Conto premiado: “UM DIA DIFERENTE”.

Conheçam abaixo o conto premiado na Bienal de 2009, no Rio de Janeiro, que faz parte da coletânea de contos do livro CONTOS DE TODOS NÓS, da Editora Hama.
Um dia diferente
            Relógio desperta com o som agudo de
costume.  Luciana acorda
sobressaltada.  Levanta a cabeça.  Procura a origem daquele barulho ensurdecedor
com os olhos apertadinhos de sono.  Sua
mão começa a tatear os objetos da mesinha de cabeceira.  Enfim, o prazer.  Seus dedos sentem o botão salvador.  Apertam-no. 
Alívio.  Fim da procura
angustiante e início da tranqüilidade. 
Luciana volta-se para o lado, enfia-se mais embaixo das cobertas,
encolhidinha, com aquele ar de satisfação e preguiça.  Permanece assim por mais cinco minutos.  Novo despertar do relógio.  Desta vez não tem desculpa.  Olha a hora, pula da cama e corre até o banheiro.  A ducha fria a desperta por completo.  Volta ao quarto enrolada na toalha.  Procura um traje no guarda-roupa, que para
sua surpresa está por demais organizado. 
Fica pensativa. Começa a achar que algo estranho deve estar
acontecendo.  A casa silenciosa.  O armário arrumado.  A mãe ainda não apareceu para
apressá-la.  Decididamente, há algo errado.  Mas o que poderia ser?  Resolve investigar.
            Na cozinha, sua mãe, cantarolando
uma canção antiga, prepara o café.  Está
com ar de felicidade.  Luciana entra
esbaforida, mas pára de repente, diante do inusitado da cena. 
            – Mãe, aconteceu alguma coisa? –
pergunta.
A mãe,
voltando para ela, lhe dá um carinhoso beijo na face, um bom-dia gentil e a
manda sentar-se.  Luciana fica
boquiaberta.
            – Mãe, o que está havendo?  Não vai trabalhar hoje? 
            – Claro que vou.  Só quero tomar meu café tranqüila, como
sempre.
            – Sempre?! – surpreende-se Luciana.
– A senhora nunca toma café, sai sempre correndo, nunca tem tempo…  – 
Interrompe-se. – Quem arrumou meu armário?
            – Sua irmã.  Ela achou que você anda muito cansada…
            – Carla arrumou meu armário?!  Essa é boa! 
Ela nem consegue arrumar o que é dela!
A mãe
ignora o que Luciana diz e, sorrindo amigavelmente, lhe entrega um pratinho com
um misto-quente.  Luciana olha o prato
sem entender nada.
            – Que cara é essa, menina?  Não gosta mais de misto-quente?
            – Eu?!  Claro que gosto…  Mas é que… 
A senhora nunca tem tempo de fazer… 
E eu nunca tenho tempo de comer… 
Estou sempre em cima da hora…
            – Luciana, que está havendo com
você? Está doente?  Não pode ir
trabalhar?  Vou ligar agora pro seu
Alfredo e avisar que você não vai trabalhar hoje…
            – Imagina, mãe!  Seu Alfredo me põe no olho da rua!  Aquele intratável!
            – Não fala assim!  Uma pessoa tão boa!
            Luciana, preocupada com a
esquisitice da situação, decide ir logo pro trabalho.  Nem come o sanduíche.  A mãe ainda tenta chamá-la.  Em vão. 
Ela já ganhou a rua.
            As surpresas foram muitas para
Luciana nesse começo de dia.  Primeiro o
armário todo arrumado.  E pela irmã!  Depois o silêncio da casa…  Onde estaria o pai, sempre apressado e preocupado
e a irmã, implicante e intrometida?  E a
mãe, estranhamente tranqüila e bem-humorada? 
O que teria acontecido?  Nunca a
vira assim tão carinhosa e contente.  Nem
no dia de pagamento!  Principalmente!  Porque logo lembrava de todas as contas e do
pouco dinheiro que ganhava.  Era um baixo
astral só.  O que a teria feito mudar de
atitude?  “Será que ganhou na loteria?” –
pensou Luciana.  Estava absorta em seus
pensamentos, quando de repente percebeu que tudo estava diferente nas ruas
também. 
            Não havia ninguém dormindo nas
calçadas.  No sinal de trânsito, próximo
ao ponto de ônibus, nenhuma criança oferecendo-se para lavar os pára-brisas ou
vendendo balas.  Passou a reparar, então,
nas pessoas ao seu redor.  Todos tinham
expressão de felicidade, de paz.  De
paz!  Essa era a palavra!  Paz! 
Percebeu que a bolsa de uma mulher estava aberta.  Ela nem havia se dado conta.  Decidiu avisar.  A mulher olha Luciana completamente surpresa,
como se tivesse ouvido uma asneira das grandes. 
“Como alguém poderia se preocupar com uma bolsa aberta numa cidade tão
tranqüila como o Rio de Janeiro? 
Inadmissível!”  Luciana,
constrangida, pede desculpas e se afasta, cada vez mais intrigada.  Será que ela estava sonhando?  Ou as pessoas tinham enlouquecido?  Mas o que dizer da ausência dos mendigos e dos
pivetes, já tão integrados na paisagem da cidade?  Não encontrou nenhuma resposta para suas
indagações.  Ao contrário.  As surpresas continuaram.
            Os ônibus passavam a toda hora e se
não tinham lugar, também não estavam lotados como de costume.  Luciana, saindo do transe, decidiu-se por
pegar um deles.  Logo ao entrar,
estranhou a simpatia do cobrador, sorridente, dando bom-dia a todos. E o
motorista?  Nossa, que cavalheiro!  Abria a porta da frente para todos os idosos
e estudantes!  Sem reclamar!  Só arrancava depois da subida deles.  Tudo com muita tranqüilidade e, pode-se
dizer, com profundo amor ao seu semelhante. 
Amor até aos carros de passeio. 
Tão odiados e ignorados antes. 
Agora, com ultrapassagem garantida e segura por um dos maiores representantes
do transporte coletivo.  E os motoristas
ainda se cumprimentavam, como se fossem velhos amigos!  “Meu Deus! 
Será que alienígenas me raptaram? 
Criaram um mundo igualzinho ao meu só pra me enlouquecer!  Me confundir!” – questionava-se Luciana, sem
entender o porquê de todos estarem tão fraternos, tão cheios de amor pelo
próximo.
            No trabalho, as novidades
continuaram.  Luciana trabalhava na seção
de trocas de uma loja de eletrodomésticos. 
Todos os dias as reclamações chegavam aos montes.  Os consumidores, insatisfeitos com os
defeitos apresentados por seus aparelhos recém-comprados, ameaçavam denunciar
ao Procon.  Mas hoje não.  Todos estavam compreensivos e educadíssimos.  Uma senhora dizia que a sua cafeteira,
comprada há uma semana, não havia feito nenhum café.  Luciana, em princípio, disse que ela não
devia estar sabendo manuseá-la.  A
senhora, contudo, lhe explicou, educadamente, como funcionava a cafeteira.  Luciana culpou, então, as tomadas de
eletricidade da casa da mulher.  Quando a
senhora já estava, praticamente, convencida a trocar todas as tomadas de sua
casa, o Senhor Alfredo, que observava, de longe, o desenrolar da situação
aproximou-se e num gesto que surpreendeu Luciana, avisou a senhora que iria
trocar a cafeteira.  A mulher agradeceu
muito, principalmente, a Luciana pela atenção. 
Seu Alfredo chamou, então, Luciana para conversar.  “Nem tudo está diferente hoje.  Lá vem bomba!’ – pensou.
            Logo que entrou, Luciana foi logo
desculpando-se.
            – Seu Alfredo, me desculpe, mas eu
estava cumprindo suas ordens, de só trocar em último caso…
            – Por que o nervosismo,
Luciana?  Eu só queria saber como anda a
faculdade?  Muitos trabalhos?  Tenho notado que você anda muito
cansada…  Acho que está precisando de
uma folga…
            – Folga?!  Mas mal podemos tirar férias!
            – Acho que você está
estressada.  Essas normas são tão
antigas…  Há tanto tempo que tudo
mudou…  Você ainda era tão jovem…  Como pode se lembrar?…
            – Meu Deus!  O tempo passou e ninguém envelheceu!  Será que eles não perceberam?  Minha mãe, Carla, seu Alfredo…  Como podem ter se esquecido?  – pensou angustiada.
            Estava tão entretida com seus
pensamentos, que nem se deu conta que estava voltando para casa, acompanhada de
Tânia, uma colega do trabalho. 
            – O que eu estou fazendo aqui?
            – Seu Alfredo te mandou pra
casa.  Achou que você não está muito bem.
            – E você?  Também não está? 
            – Ele mandou vir com você.  Ficou preocupado.
            – Mas logo você, que nem vai com a
minha cara!
            – Eu?!  De onde tirou essa idéia?
Luciana
altera-se.  Começa a gritar.  Tânia não sabe o que fazer.  As pessoas começam a olhar.  Isso enfurece ainda mais Luciana.
            – O que é?  Pensam que sou louca?  Vocês é que são?  Ou então querem me enlouquecer!  Alguém quer me internar!  E nem herança tenho!  Quem pode querer isso?!
            – Luciana, o que há com você? –
pergunta Tânia, tentando segurar a colega, que se desvencilha gesticulando
muito.
            – Me larga!  Essa louca quer me colocar numa camisa de
força!  Me larga!  Me larga!
            De repente,
Luciana pára de se debater.  Uma mão
forte e masculina a segura com firmeza. 
Ela está meio sonolenta.  Parece
que desmaiou.  Não percebe de imediato o
que acontece.  Ouve uma voz distante, de
homem.  Não compreende suas
palavras.  Ele a sacode.  Só aí Luciana recobra os sentidos.  Está dentro de um ônibus.  Um pivete, perto dos seus 16 anos, a ameaça
apertando seu braço com uma das mãos e na outra mantém o canivete encostado no
rosto dela.  Luciana desperta.
            – Como é que é?  Não adianta fingir que tá dormindo não!  Comigo não cola!  Vai passando o relógio e a grana!
            O ônibus dá uma freada.  O pivete quase perde o equilíbrio.  Fica irritado.  Aperta o cerco contra Luciana.
            – E aí?  Passa logo! 
Se não te furo a cara!
            Luciana olha-o.  Dá um sorriso.  Tira o relógio, pega o dinheiro e entrega a
ele contente.  Levanta-se.  Dá um beijo na sua face.  O pivete fica estarrecido.  Não se move. 
Olha surpreso para ela, que observa as pessoas completamente feliz.
            – Obrigada!  Agora sei que não estou louca!  Estou em casa outra vez!  Tudo como antes!  Você é um anjo!  Obrigada por me trazer de volta a realidade!

Amigos leitores, em breve, publicarei contos e crônicas ainda inéditos. Aguardem!

10 comentários em “Conto premiado: “UM DIA DIFERENTE”.

  • quarta-feira, 19 de setembro de 2012 em 19:20
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    Sim, tenho certeza que você leu! No livro CONTOS DE TODOS NÓS, da Editora Hama! Além do meu conto, o livro conta ainda com a participação de outros 19 autores. Vale a pena dar uma conferida.

  • quarta-feira, 19 de setembro de 2012 em 20:15
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    Fátima, como sempre, maravilhoso!!! Eu e a Nick estamos ansiosas por mais novidades dessa incrível escritora: cheia de imaginação e energia positiva! é disso que precisamos no nosso dia a dia!!! Parabéns!Anna Cláudia

  • quinta-feira, 20 de setembro de 2012 em 18:49
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    È, Fátima, isso prova que as pessoas já estão tão sem esperança que banalizaram a violência que passou a ser NORMAL. Isso com certeza é muito atual. Parabéns pelo conto tão bem escrito!
    Bjs Djanira Vilela

    • quinta-feira, 7 de janeiro de 2016 em 10:33
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      É verdade, Djanira, apesar do assunto ser tratado de forma leve, a questão é bem mais profunda do que parece. Obrigada por seu comentário e reflexão! Um grande abraço!

  • quarta-feira, 3 de outubro de 2012 em 17:20
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    Nossa, fiquei com medo! Só não sei se é por causa da reação da menina ou do mundo em que ela voltou a viver! Gostei muito! Quero mais!

    • quinta-feira, 7 de janeiro de 2016 em 10:35
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      Obrigada, Celia, por seu comentário!!! Concordo com você, as situações apresentadas são assustadoras mesmo. Um grande abraço!

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