Amizade abalada

A amizade é um sentimento celebrado e enaltecido pelos quatro cantos do mundo. Tem até dia para comemorar os afetos unidos ao longo da vida, que não necessariamente têm a ver com os laços consanguíneos. São inúmeras as citações enaltecendo a amizade: “quem tem amigo tem tudo”, “amigo não tem preço” e por aí vai. Segundo o Dicionário Aurélio, a amizade “é um sentimento fiel de afeição, simpatia, estima ou ternura entre pessoas que geralmente não são ligadas por laços de família ou por atração sexual”.

As definições e percepções da amizade sugerem que ela pode ser um sentimento intenso e forte, capaz de resistir às inúmeras intempéries a que todos estão sujeitos ao longo da jornada. Será? Fiquei refletindo sobre o assunto após testemunhar o desentendimento entre duas amigas de longa data. Duas senhoras. Uma com oitenta e dois anos e outra com setenta e nove. Durante anos as duas compartilharam suas horas de lazer. Mas, de repente, um “bom dia” abalou os alicerces dessa longeva amizade. Uma intransigência aflorou entre as duas e por mais que uma delas, a mais jovem, tentasse, a outra não arredou pé e foi se distanciando.

amizade
Ilustração: Sandra Ronca. Livro: Sol, o girassol insatisfeito, de Fátima Augusta Ribeiro João.

O que seria capaz de pôr fim a uma amizade? A resposta pode não ser a mesma para todos. No caso delas tudo começou nas mensagens trocadas via aplicativo. Um dia um vídeo, no outro um cartão, mais adiante uma figurinha… Sempre enaltecendo uma figura de um determinado espectro político em detrimento de outra. Enquanto uma delas não contrariou a outra, manteve-se calada, tudo seguiu normalmente. Mas, certo dia, ao receber uma bandeira de bom dia com mais propagandas do então político, a resposta aconteceu. Tímida até. Apenas uma outra bandeirinha de bom dia. Só que desta vez a bandeira pertencia à figura de outro espectro político. Pronto! Vieram os áudios ríspidos e a reação indignada daquela que “exigia” não receber nada que lembrasse a tal figura. Surpresa com a reação enérgica e um pouco grosseira da amiga, a mais jovem delas não questionou suas falas ríspidas para evitar maiores discussões e desentendimentos. Porém, o que se seguiu a deixou profundamente triste. Aquela que sempre deixava claro seu posicionamento e se recusou a receber um simples “bom dia” personalizado, se afastou da amiga. Não a procurou mais. Só respondia mensagens se a outra lhe enviasse, sem nunca mais tomar a iniciativa. Tentativas infrutíferas de aproximação foram feitas, mas nenhuma surtiu o efeito desejado e o afastamento se confirmou nos dias que se seguiram.

Quantas histórias assim ouvimos nos últimos tempos? Quantos laços afetivos desfeitos por divergências de opinião, que até um tempo atrás não fariam esse estrago? Já pararam para refletir sobre isso? Já vivenciaram algo assim? Por que razão isso passou a acontecer com muito mais frequência? As respostas (se existem) não são simples, nem fáceis. Mas algo que ouvi muito de quem já vivenciou situação semelhante passa bem perto das redes sociais e do tipo de informação consumida. Parece inusitado, mas talvez não seja tão impossível assim. Não vou trazer dados oficiais. Meu desejo é que pensemos no assunto, reflitamos juntos, observemos mais o que nós mesmos buscamos e consumimos nas redes diariamente. Sempre nos preocupamos com o que crianças e jovens estão consumindo na internet, mas e nós, os adultos? Será que estamos tão imunes às publicações que recebemos, compartilhamos, visualizamos quanto pensamos? Será? Lembram dos vilões das telenovelas mais antigas? Lembram como eles faziam sucesso? Pois é, há um certo fascínio pelo conflito, pela “treta”, como costumamos nos referir hoje em dia às inúmeras discussões que presenciamos ou estamos diretamente envolvidos. Nos cursos de escrita criativa, normalmente nos orientam que uma história precisa ter conflito para ser atrativa. Sim, precisa de “treta”, algo que seja capaz de mexer com nossas emoções. No mundo virtual essa realidade se impôs facilmente. Uma “treta” é capaz de gerar um engajamento muito maior e assim, de repente, nos vemos envolvidos em histórias cujas personagens sequer conhecemos, mas consideramos imprescindível opinar baseado em “achismos” carregados de certezas. Ou ainda, concordamos, endossamos e compartilhamos opiniões enérgicas de outras pessoas. Com o passar do tempo, nos acostumamos a querer dar a palavra final, definitiva, sobre determinado assunto. E, quando percebemos (se percebemos), já fizemos muitas inimizades, acabamos com possibilidades de conhecer pessoas interessantes, que agregam, ou simplesmente destruímos amizades que nos eram tão agradáveis.

A pergunta se impõe: vale a pena abrir mão de uma amizade boa para simplesmente dar a palavra final? Ou, como no caso das duas senhoras mencionadas acima, vale a pena abrir mão de uma amizade por conta de um “bom dia divergente”? Será que é tão impossível duas amigas expressarem suas opiniões livremente, mesmo que divergentes, e a amizade seguir firme? Ser amigo não inclui o respeito ao livre pensamento e a livre expressão respeitosa das ideias de cada um? Uma relação de amizade onde só um tem direito à opinião é, realmente, amizade? Todos esses questionamentos me fizeram lembrar daquela pergunta: “o que seria do amarelo se todos só gostassem do azul”?

Um comentário em “Amizade abalada

  • domingo, 26 de março de 2023 em 20:48
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    Não estamos imunes.
    Estaremos qdo soubermos procurar as fontes e soubermos diferenciar especialistas e estudiosos dos “tudologos” que vemos nas redes. Todos tem opinião, mas qtos sabem justifica-la com base em fatos?
    No mais, sinto pela senhora mais nova. E fica aqui um achismo: Amizade boa é aquela em que vc pode ser vc mesmo. O amigo vai te criticar, vai discordar, vai dizer que não quer mais falar com você e no minuto seguinte tá fazendo fofoca do vizinho! Rsrsrs

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