Crítica: PI – PANORÂMICA INSANA

Há alguns meses informei a vocês que estava me dedicando aos estudos para poder entregar um conteúdo mais elaborado.

Chegou a hora de mostrar o resultado dos últimos quatro meses de dedicação e aprendizado. O texto que disponibilizarei hoje é parte integrante do trabalho de conclusão da disciplina “Semiologia do Jornalismo Cultural nas Artes Cênicas“, ministrada pela professora Denise Siqueira, no curso de Pós-graduação em Especialização em Jornalismo Cultural na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

Como objeto de estudo e análise crítica escolhi a peça PI – PANORÂMICA INSANA, idealizada por Cláudia Abreu e Luiz Henrique Nogueira, e dirigida por Bia Lessa. Com duração de noventa minutos, PI foi escrita por André Sant’Anna, Júlia Spadaccini e Jô Bilac, e traz ainda citações de Franz Kafka e Paul Auster. Em busca desse olhar mais apurado diante de um espetáculo teatral, apresento a vocês o resultado da minha análise sobre o espetáculo.

 

 

Corpo e expressão das emoções na cena: impressões.

Uma das integrantes da equipe técnica do teatro, agitada ao ouvir o terceiro sinal, avisou ao atendente que recolhia os ingressos e conferia os documentos, para agilizar a entrada. A situação parecia indicar uma falha na organização, embora não fosse noite de estreia. Com as luzes acesas era possível visualizar todo o cenário, assinado por Bia Lessa. Milhares de peças de vestuário compunham o ambiente e ocupavam todo o espaço cênico. Apenas um bebedouro destacava-se em meio a esse amontoado de roupas de todos os tipos. A concepção do cenário de Bia Lessa é quase um personagem à parte do espetáculo, tamanho é o impacto que ele é capaz de suscitar, quando nos deparamos com ele pela primeira vez. No emaranhado de cores das inúmeras peças de roupa que preenchem todo o ambiente, sentimos uma espécie de sufocamento e opressão. “Roupas, comportamentos e corpos mostram como um determinado grupo social representa a expressão da emoção”, diz Denise Siqueira em seu livro “A Construção Social das Emoções”  (2015, p. 27). Bia Lessa usou e abusou desses três elementos: roupas, comportamentos e corpos nesse espetáculo para mostrar o caos da atualidade.

O público ainda não havia terminado de se acomodar, quando os atores entraram em cena. Com um misto de surpresa, dúvida e inquietação, sem apreender totalmente o que estava se passando, o público vai sendo inserido na narrativa. As luzes da plateia vão se apagando, os atores começam a proferir uma insana avalanche de nomes, números de documentos e pequenos detalhes de vidas que nunca se ouviu falar, anônimos, desinteressados uns dos outros. Começam a se movimentar por todo o palco. A iluminação, também de Bia Lessa, vai buscando o foco na narrativa de cada personagem, imprimindo ritmo, ora rápido, ágil, ora direcionado, incisivo.

O cenário se confunde com o figurino, assinado por Sylvie Leblanc. As trocas de roupa vão acontecendo no próprio palco. Enquanto um ator fala, os outros se movimentam rapidamente por todo o palco, trocam de roupa, assumem um personagem e logo em seguida outro, mais outro e mais outro. A “roupa de baixo” favorece essa troca de figurino de forma ágil, sem grande exposição dos atores e totalmente dentro do contexto.

 

Cenário de Bia Lessa e figurino de Sylvie Leblanc.

 

“PI – Panorâmica Insana” não apresenta propriamente uma trama, não há começo nem fim, os personagens não se relacionam entre si. É um retrato e extrato da realidade, como uma imensa colagem, recortes de vida, sem profundidade, indiferente, sem empatia. Parecem manchetes de jornal. A trilha sonora acompanha e dá vazão ao caos. Em alguns momentos, o som alto misturado às vozes dos atores simula a balbúrdia do mundo contemporâneo, onde todos falam ao mesmo tempo, mas ninguém parece se ouvir ou se enxergar. A concepção musical de Dany Roland não se destaca, funciona como mais um elemento que corrobora o caos vivenciado atualmente.

O público se mantém simpático à abordagem e às atuações impecáveis dos quatro atores, com destaque para Leandra Leal e Claudia Abreu. O texto favorece muito a atuação das duas. O menos favorecido pelo texto é, talvez, Luiz Henrique Nogueira. Um de seus melhores momentos se dá quando interpreta um racista que não se reconhece como tal. Vale destacar a interpretação de Rodrigo Pandolfo, que apesar de arrancar gargalhadas da plateia em dado momento, traz à tona em seu discurso questões importantes sobre religiosidade e censura a determinados comportamentos “em nome de Deus”.  Um outro momento de grande interação e reação do público se dá quando Claudia Abreu interpreta uma psiquiatra. Com seu discurso situado no momento político atual consegue arrancar reações efusivas da plateia, ainda que declaradamente não assuma um lado. Leandra Leal e sua irretocável atuação é a responsável por alguns dos momentos de maior impacto de toda essa “panorâmica insana” do nosso mundo contemporâneo, seja quando é vítima de canibalismo, ou quando dá voz a mulher que come o próprio cocô. Com uma interpretação convincente e dentro da sua lógica singular, ela nos leva a refletir sobre diversas situações cotidianas pouco lógicas para justificar o seu hábito de comer o próprio excremento.

Em noventa minutos de espetáculo, o público vai sendo levado de roldão de uma emoção à outra. Riso, deboche, asco, raiva, dúvida passam como uma flecha pontiaguda diante dos olhos da plateia, completamente seduzida por aquela insanidade e histeria de corpos, emoções e sensações em um ambiente caótico e desordenado. Ao final, aplaudem de pé a visão apocalíptica e sem esperança da dramaturgia de Bia Lessa.

Em PI – Panorâmica Insana tudo é chocante, cenário, atuações, figurinos. Mas essa insana desordem busca à reflexão. Não oferece uma resposta pronta. A conclusão do espetáculo é igualmente impactante, como foi desde o início. Não há mais cor, não há mais luz, só a escuridão e o fim. Um alerta? Um convite à mudança de atitude? Parece querer dizer que se não modificarmos a forma de encarar e viver no mundo, será o fim de nós mesmos. Será? Mas como mudar? O que mudar? Quando mudar? Não há respostas prontas.

7 comentários em “Crítica: PI – PANORÂMICA INSANA

  • domingo, 7 de julho de 2019 em 20:58
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    Muito bom seu texto sobre a peça teatral. Você é ótima para resumir uma peça ou texto, amei.

    • segunda-feira, 8 de julho de 2019 em 01:25
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      Muito obrigada, Ana Maria! Que bom que gostou!

    • segunda-feira, 8 de julho de 2019 em 01:24
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      Sim, caro Aldenir! Estudar é sempre bom e nos mantém em movimento.

  • terça-feira, 9 de julho de 2019 em 09:35
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    Fátima, parabéns pela nova empreitada!!!
    Sobre à crítica, confesso que fui reportada ao teatro e “tenho a sensação que assisti a peça” após sua contextualização… com todo esse misto de sentimentos e confusão estabelecidas no palco, me assustei, refleti, e finalmente decidi que vale a pena assistir a peça.
    Parabéns pela excelente qualidade da sua escrita.

    • quinta-feira, 11 de julho de 2019 em 10:04
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      Obrigada, Simone Aguiar! Que bom que gostou! Um grande abraço!

  • segunda-feira, 19 de agosto de 2019 em 14:23
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    Fátima, parabéns! Muito bom! Que você continue progredindo, hoje e sempre!

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