Eleições, lembranças e amizade.

A noite já ia alta.

Pensativa, apreensiva (ou seria melhor dizer levemente angustiada), física e mentalmente esgotada, sem saber ao certo o que desejava fazer e sem coragem de pegar o celular para checar as mensagens. Há horas não o olhava nem de relance. Havia passado o dia com um misto de esperança e apreensão, sem cabeça para encarar a avalanche das mais de mil mensagens que chegaram ao longo de todo o dia. Por fim, depois do veredito inevitável, achei que era hora de encarar mais esse desafio: o aplicativo de mensagens no dia das eleições mais difíceis da minha vida.

 

 

Depois de ler e responder algumas mensagens individuais, me detive em um dos grupos que possui o menor número de integrantes, mas onde estão algumas das pessoas mais especiais que conheci nos últimos tempos. Somos cinco mulheres. Nos reunimos neste pequeno recanto só nosso há cerca de quatro anos, quando ainda éramos representantes de turma da escola dos nossos filhos. Uma professora, uma médica, uma enfermeira, uma publicitária e uma jornalista reunidas com um objetivo em comum: colaborar e incrementar a parceria escola/família.

Assim como as diferenças nas profissões, nossas posições políticas também eram, mas na convivência do dia a dia aprendemos que essa diversidade de pensamento não impedia o florescimento e a consolidação de amizades sinceras. E assim a nossa foi se solidificando: diversa, intensa e verdadeira.

 

 

Contudo, naquele último domingo de outubro de 2018, apenas uma de nós ficou do lado do vencedor. Mas escolher o lado vitorioso não lhe proporcionou sensação de alegria. Ao contrário. Até porque essa vitória carecia de sabor e unanimidade. Sim, porque apesar de ter recebido pouco mais de 57 milhões dos votos válidos, contra os 47 milhões do segundo colocado, o candidato vencedor está longe de ser uma unanimidade nacional. Isto é um fato. Basta olhar os cerca de 42 milhões de votos nulos, brancos e abstenções. Um resultado assustador há que se dizer. Afinal esse número expressivo de eleitores não se sentiu representado por nenhuma das propostas e decidiu delegar a outros o ato de escolher o governante do país para os próximos quatro anos.

Amizade X política

A “vencedora” do grupo estava preocupada, apreensiva, incomodada. Receava ser julgada e “condenada” por nós e acabar perdendo a nossa amizade. Apesar disso, com uma coragem que lhe é característica, tornou pública (para nós) a sua escolha. Não foi fácil para ela. Não foi fácil para nós. Mas a amizade que construímos permitiu que pudéssemos expressar nossos sentimentos e opiniões.

Da mesma forma que ela expôs suas razões, cada uma das “perdedoras” também expôs a sua.
Rememoramos emoções, sentimentos, histórias… Lembrei do comício das “Diretas Já”, quando respondi a plenos pulmões à pergunta: “diretas quando, Rio?” “JÁ!!!”
Quase fui esmagada naquele dia, comprimida pela multidão, que ansiava por fazer valer a sua voz. Sobrevivi. E guardo lembranças boas, apesar de ter esperado mais quatro anos para escolher diretamente o meu presidente.

Comício pelas “Diretas Já” na Candelária, centro do Rio de Janeiro, em abril de 1984.

Perdi muitas eleições. Minhas escolhas não eram a escolha da maioria. Uma mania insana, meio idealista e, talvez, utópica, como muitos já me disseram, de querer remar contra a maré, de não aceitar a frase “isso sempre foi assim”, de sonhar com um mundo diferente, menos desigual, mais justo para todos. Para todos.
Mas segui firme.
Me veio outra lembrança à mente: a eleição do presidente Collor, aquele que renunciou antes de sofrer o “impeachment”, para não perder seus direitos políticos. Me lembrei que a bola também foi dividida entre mim e meu namorado à época, hoje marido. Ele votou no Collor. Eu no Lula.
Eu disse a ele, na época, que o Collor começou a ser construído alguns meses antes. Me lembrei de uma capa da revista Veja com um ilustre desconhecido intitulada “o caçador de marajás”. Cheguei em casa naquele dia e disse: “este homem vai ser eleito”. Ninguém deu muita atenção. Mas o discurso dele encontrou ressonância em grande parte da população, que ansiava por mais justiça social, mas que acabou elegendo um representante da elite alagoana, que fez o que todos diziam que o Lula ia fazer se fosse eleito naquela época: confiscar a poupança de milhões de brasileiros.

Ver este homem, hoje, como senador da república, assim como tantos outros em situação semelhante, muitos reeleitos para os próximos quatro anos, me deixa com um nó na garganta.

Para mim, continuei dizendo às minhas caras amigas do grupo, é como se o nosso Brasil fosse uma imensa casa grande, onde alguns que vivem no alojamento acreditam estar mais perto da casa grande do que da senzala. Mas a verdade é que não é assim.

O novo presidente

Assisti o crescimento da popularidade do presidente eleito, agora em plataformas mais avassaladoras, a Internet, cujo poder ainda é subestimado e não totalmente conhecido. Mais uma vez disse a amigos próximos que ele era um candidato forte. “Que nada! Ele é um louco, um falastrão”, disseram alguns há tempos atrás. Um “louco” que soube capitanear os anseios de uma parte da população que não se sentia ouvida nem representada. Começou com a bandeira dos militares, depois da segurança pública e acabou se popularizando como porta-voz de muitas polêmicas, com discursos contra as minorias, os direitos humanos, a preservação do meio ambiente, a política de cotas e a ideologia de gênero. Assumiu a bandeira da moralidade, da família e foi conquistando cada vez mais apoiadores, que acabaram dando vazão aos desejos e anseios de grandeza do então deputado.

Inimigo público?

Paralelo à sua atuação, o mundo político elegia um inimigo público número um: o PT. Como se toda a sujeira a que fomos expostos tivesse sido inventada por um único partido. Em nome da guerra que precisava abater esse inimigo infame, fecharam-se os olhos para outros crimes de igual teor. Mesmo que os dados oficiais comprovem que o partido não ocupa a liderança em políticos cassados, por exemplo, ou que o seu maior líder está preso e que a sua última presidente eleita foi deposta, tudo conforme a “lei” vigente, ainda assim, ele permanece sendo o inimigo mais perigoso a ser abatido. Essa história toda me fez lembrar da lenda que circulava na época do golpe militar de 1964, que dizia que “comunista comia criancinhas”.

E cá estamos nós. Jair Messias Bolsonaro eleito presidente da República Federativa do Brasil.

Jair Bolsonaro, presidente eleito.

Finalizei minha mensagem a minha caríssima amiga “vencedora” dizendo:
– “Você decidiu que ele merecia um voto de confiança. Como antes, nas tantas vezes que divergi das pessoas próximas, respeito a vontade soberana e o desejo de cada um. Mas se você me perguntar como está meu coração, responderei com a sinceridade que me é característica: doído. Ah, como eu queria que tudo fosse diferente! Mas vamos seguir juntas e unidas. Muita luta há de vir. Mas sobretudo, vamos precisar de muitos olhos bem abertos daqui pra frente. Muitos. E a partir deste momento estaremos do mesmo lado. Do lado da justiça para todos. Para todos. Tenho certeza”.

 

Democracia sempre

E assim será. Que o país possa seguir em frente, respeitando as individualidades, a opinião de cada um, a liberdade de expressão e, sobretudo, a Constituição cidadã de 1988. Uma democracia saudável só sobrevive quando há o contraditório e uma pluralidade de visões, não com o objetivo puro e simples de protestar ou contestar. Não. Não mesmo. Mas com o objetivo de fazer deste país um lugar melhor para todos os seus cidadãos. Agora. É, chega dessa história de que somos o país do futuro. Já passou da hora de nos tornarmos o país do presente, onde todos possam ter voz, participação e uma vida digna.

4 comentários em “Eleições, lembranças e amizade.

  • domingo, 4 de novembro de 2018 em 18:10
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    Correto e coerente seu texto. O eleito também não foi e nunca será meu candidato. Mas entendo estamos numa democracia e temos que aceitar a decisão da maioria.

  • domingo, 4 de novembro de 2018 em 22:13
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    Fátima,
    Que maravilha seu texto, lindamente escrito!!! Concatenado e cheio de emoções. Adorável leitura!!!

  • domingo, 4 de novembro de 2018 em 23:40
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    A Crônica relata com muita seriedade e serenidade os fatos q vivemos nos últimos 30 anos. Tempo o suficiente pra refletir o nosso país, o seu povo e as suas tomadas de decisão. O mais importante de tudo, no meu ponto de vista, é poder fazer parte de uma nação que apesar de todos os percalços vividos nesses tempos, soube respeitar a vontade popular, a democracia. Excelente post! Parabéns!

  • terça-feira, 6 de novembro de 2018 em 08:27
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    Fatinha, ontem nossa amiga Simone me recomendou a leitura deste seu texto.
    Que vontade de te dar um abraço apertado!

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