Coringa: a gargalhada que não ri.

Quem for assistir ao filme “Coringa” esperando encontrar um confronto entre heróis e vilões claramente definidos, pode ter certeza, vai se frustrar. O roteiro de Scott Silver e assinado pelo também diretor do longa, Todd Phillips, não tem a intenção de deixar claro quem é bom ou mau em essência. Até porque o filme usa e abusa de situações em que muitas pessoas aplaudiriam reações mais violentas. Em outras, as demais personagens seriam tão malvadas quanto o pior vilão de um filme de terror. Não necessariamente utilizando armas de fogo ou algo similar, mas simplesmente com ações e palavras. Até porque o filme de Phillips e Silver apresenta uma narrativa lenta e psicologicamente opressora. As cenas de violência mais explícita causam impacto, é claro, mas ela sempre esteve ali, desde o início, no olhar atormentado de Fleck, que nos deixa entrever toda a raiva represada dentro daquela mente atormentada.

 

 

Li e ouvi alguns comentários (inclusive de amigos próximos) sobre a cena do metrô, afirmando que a partir dali, Arthur Fleck se transforma definitivamente em Coringa, isto é, no mal em essência. Será? A atuação irrepreensível e intensa de Joaquin Phoenix rouba a cena o filme inteiro, mesmo contracenando com atores incríveis como Robert de Niro na pele do apresentador Murray Franklin. Não sobra muita coisa para o restante do elenco. Phoenix e seu Coringa não deixam dúvidas de quem são e o que sentem desde o início. A cena do metrô, talvez, tenha aberto a porta e feito com que ele desistisse de tentar parecer indiferente às agressões que sofre e vê outros sofrerem desde sempre. No trabalho é o bullying sofrido pelo anão diariamente praticado pelo outro colega de trabalho. No metrô é a mulher que está sendo importunada por três rapazes bem vestidos, jovens, provavelmente de classe média, mas de comportamento machista, agressivo e desrespeitoso. O que se passa a seguir não é fruto de uma atitude heroica momentânea, o que aliás nem é lembrado nas manchetes do dia seguinte, que sequer mencionam a mulher assediada. Não. E a fotografia de Lawrence Sher, claustrofóbica, sombria, contribui para a imersão do público na mente de Arthur Fleck. Não há surpresa. O público praticamente espera a reação dele, principalmente quando ele começa a gargalhar, uma gargalhada nervosa, angustiada e perturbadora, uma das sequelas dos seus inúmeros problemas mentais. Eu posso até afirmar que, em alguns momentos, nesses dias de grande polarização atual, o público se frustra por essa resposta mais violenta tardar a chegar.

Arthur Fleck teve uma vida dura, é fato. Foi humilhado, vilipendiado, enganado, abusado. Não que tenhamos exatamente visto o que lhe aconteceu na infância, mas alguém ao longo da história nos conta esses fatos. Isso enfraquece um pouco a narrativa, não a torna tão verossímil nem justificável e nem causa empatia do público por ele. A situação é diferente quando o colocamos em uma cidade como Gotham City. Isso sim, facilita a aproximação e uma certa compreensão do público.

 

 

Gotham é uma cidade caótica e decadente, afogada em problemas sociais, como desemprego, falta de segurança, com a população mais pobre desassistida pelo sistema de saúde público, violenta, corrupta e preconceituosa. Nesse momento é praticamente impossível não se identificar com Fleck e ter certeza de que, em algum momento, todos podem ser “bons” ou “maus”. Gotham pode ser qualquer uma cidade grande da atualidade. O morador do Rio de Janeiro, por exemplo, consegue facilmente se sentir um cidadão de lá. Aqui, como em Gotham, também se espera por heróis ou salvadores. Mas no filme de Todd Phillips esse herói justiceiro ou salvador ainda não existe. Nem no Rio. Nem em Gotham City. E nem em lugar nenhum.

Um amigo me disse que o Coringa é “desprovido de empatia”. Não considero essa exatamente uma boa descrição. Com seu figurino colorido, mas surrado, sem brilho, de alguém capaz de ser muito cruel e violento e, ao mesmo tempo, demonstrar alguns códigos de conduta, não muito compreensíveis, mas que demonstram uma certa racionalidade, ou seria melhor dizer motivação, própria, pessoal e particular. Pode não parecer tão clara para o público a existência dessa racionalidade ou motivação de Arthur, mas ela está lá em algumas situações sim. Ele escolhe com quem quer explodir sua raiva represada, isto é, suas vítimas. E após esses arroubos explosivos, o Coringa é capaz de voltar imediatamente a usar a máscara do palhaço, que esconde seus verdadeiros sentimentos.

“Coringa” é um filme impactante, pesado, perturbador, polêmico e violento em vários aspectos. Principalmente porque mostra uma realidade muito próxima a todos nós. Discursos políticos vazios, enquanto uma população pobre, carente, pagadora de impostos fica completamente desassistida. Essa efervescência política faz dele um filme incrivelmente atual e a atmosfera sombria presente em toda a trama não deixa dúvidas sobre a perspectiva da história.

2 comentários em “Coringa: a gargalhada que não ri.

  • domingo, 24 de novembro de 2019 em 22:51
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    Adorei seu post. Me fez pensar em pontos que eu não tinha observado. Vou tentar revê-lo!

    • segunda-feira, 25 de novembro de 2019 em 00:19
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      Que bom que gostou, Denis! Obrigada por seu comentário. Quais pontos não tinha observado?

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